segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Cachoeiras de água salgada brotavam do rapaz invisível, esteve tentado por ela, e nesse mar de infindáveis entorpecentes da mente, agiu cobrando coisas que não deveria, tentou lhe dar e queria receber algo que não estava ao alcance de ambos, paralelamente frágil e forte.
Noites mal dormidas, olhos acesos até raiar o sol, anotou em seu caderninho com capa de couro sintético cinza escuro coisas que disse, coisas que ouviu também O desgostar, está ensinando-o gostar de si, ele tem tentado, ó perdão.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

matéria líquida 01

"[...] Tudo interstícios,
Tudo aproximações,
Tudo função do irregular e do absurdo,
Tudo nada... [...]"

o grão que pisa já é outro, no instante em que foi pisado, o suor que cai já tem outros sais, aquele canto nunca mais será o mesmo, mesmo assim parecendo, de forma generalizada, ser. Aquele cheiro, a mesma cor, aquela água, a mesma flor, aquele pé de manga ali, até mesmo aquela praça boa de repousar, em baixo da árvore, em baixo do ar, o ar: comprimir, soprar, sentir, respirar: mudou de lugar!




terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Há alguém a minha frente, com ele diferente. Profere à um, maçãs, ao outro, peras. Perde-se em suas lonjuras e baralha seus pensamentos num mundo inventado de seu ser, hostil e voraz. No fundo sabe de sua imperfeição, se esconde por trás de suas máscaras em porcelana fria, criando universos e encalhes.
Não soube disfarçar seu desassossego, entregou suas ações apenas em respirar seu olhar de culpa. Prendeu-se a esta conjuntura, por fitas de seda púrpura em laço. Caminhou, riu, gargalhou de um, enquanto o outro a esperava, e assim por diante seguiu com suas caras de arenito polido, pintado de diamantes.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

"Uma raiz muito funda no design, suas figuras são arredondadas e agradáveis, mesmo quando a mensagem por trás do sorriso seja amarga. A enorme profusão de curvas em meio a poucas retas reforça seu temperamento delicado e suas cores naturais e brilhantes revelam não somente seu apreço pela natureza mas o desejo de colorir e fazer brilhar sua natureza intrínseca, composta, antes de tons formais. Seu interesse pelo manual e extroversão são refletidos nas obras que versam com costura e colagem, que se desdobram como móbiles e cabides, convidando a entrar e olhar. Mesmo assim, algumas ainda carregam lastros visíveis de angústia, seja na escolha de tons ou no próprio tema." - Guilheme Massau











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aquele moço ali...

Aparentava ter seus vinte e poucos anos, de olhar ligeiro a brilhar feito estrela no céu límpido da noite, riso doce mas que também apresentava um certo desconsolo. Chegou sorrateiro, aos poucos aproximou-se do rapaz invisível, o olhava com interesse e uma certa curiosidade. O rapaz invisível, hesitou, esqueceu-se como era ter alguém interessado nele, se sentia eufórico e ao mesmo tempo receoso, lembrara que não se achava uma pessoa interessante. A mesmice de seus dias e seus insólitos comportamentos diante dos outros o cansavam. Irritara-se ao evocar de suas lembranças a forma com que engole os alimentos, como se eles fossem fugir de seu prato. Espelho pra ele era como a morte, evitava olhar para não se lamuriar. Dessa maneira como poderia imaginar que alguém se interessaria por um cara assim, incomum, de aparência estranha, que come depressa, é ansioso e impulsivo?


O mundo o levara ao fundo do poço, sua auto estima nem existia. De bom coração ele procurava por um homem que fosse seu amigo, um companheiro, confidente, não necessariamente um parceiro sexual, mas alguém que levasse sua cabeça ao colo, e acariciasse seus cabelos sem pretensão erótica, apenas por dar carinho, um afago de amigo. Sentia-se incompreendido, queria uma mão macia com os dedos entrelaçados aos seus. Contudo, não aceitava a ideia de alguém o querer por perto, mesmo desejando em seu mais profundo que alguém o fizesse.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017


"Ela amava o céu. Era a coisa mais infinita que ela conheceu" 

Image may contain: cloud, sky and outdoor
Imagem por Sara Mandolini
... e naquele instante ao vislumbrar o céu, um pedacinho de seu coração vibrou, voltas e voltas davam seu estômago em uma sinfonia bem engraçada, assim como ao mesmo tempo seus pés davam discretos pulinhos, almejando o momento em que iriam finalmente desgrudar do chão, e se atirar em tamanha imensidão. Andou para lá e para cá caçando ideias pelo ar, de repente olhou para a pequenina mesa de jatobá que estava a alguns passos de distância, pegou uns pedaços de papel que ali repousavam, e pois-se estirada ao chão planejando sua mais recente ideia: criar um par de asas. Desenhou um par de asas com carvão sobre o papel, esculpiu em argila, usou tinta óleo sobre papelão rasgado,  e até de garrafa pet ela tentou, mas nenhuma daquelas asas a permitiam voar do jeito que desejara. 

Num fim de tarde de céu bem límpido, que apresentava um espetáculo de nuvens multicoloridas ao horizonte, algumas manchas amareladas, e outras pinceladas de um violeta sútil, estivera deitada com alguns bons amigos sobre uma rocha a beira de um despenhadeiro, e quebrando o silêncio a bela irmã do seu amigo com seus cabelos roxos e uma aura mística, disse: 
- ei! experimente deitar de cabeça para baixo aqui sobre a roxa, você irá se surpreender. Num salto, deitou-se sobre a roxa, mas com medo de cair barranco a baixo segurou bem forte nas mãos de seus amigos, inclinou sua nuca e abriu bem seus olhos, parecia-lhe que o céu era todo seu, teve a infinita sensação de paz sobre tamanha grandiosidade invertida  sob seu corpo, veio-lhe em certo momento uma vertigem, sentia o tamanho de sua insignificância perante resplandecente grandiosidade. Pôde então perceber que suas asas não eram tangíveis nem perceptíveis aos olhos, mas não lhe restava dúvidas de que elas a levariam mais longe do que  poderia imaginar, continuou fitando o céu ao contrário, e sentia que aquela era a verdadeira posição do céu, toda aquela imensidão se tornara maior ainda, se perguntava se era possível uma imensidão, ser mais imensa do que já é, e toda aquele cenário petrificante dava-lhe uma única resposta. 

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terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

esperança azul em papel

esperança azul em papel

O vento tocava em seu rosto como água em pedra a beira do abismo, suas madeixas tilintavam em pequenos fios expostos a luz de sol leve que o acompanhava. O aroma dos pés de dama da noite o preenchiam de lembranças, estava ali mas também estava naquela manhã de domingo, com a cara amassada, deitado no chão daquele humilde e aconchegante palacete de seu querido amigo, seu coração nunca estivera tão preenchido de amor e de um singelo desejo como naquele momento, porém, deixou escapar um triste sorriso de seus lábios, aquela memória o fara despertar em seu peito borboletas feridas, impossibilitas de alçar voo neste momento, com o olhar voltado para a calçada escura, num relance de minuto fitou a sua frente uma menininha sorridente, ela dava gostosas risadas e se divertia sozinha com aquele pedaço de papel em algumas dobras, ela tomou pose, e o arremessou, liberto feito um passarinho indo paralelo ao vento, a dobradura foi ao encontro do rapaz de sorriso triste, que poderia ter desviado, mas deixou que aquela nave mágica de uma pequena criança o tocasse, ainda estava transitando sua presença de um lugar preso ao passado para aquele instante, e neste momento a dobradura bateu em seu peito e caiu sem forças sobre seus pés, a mãe daquela jovem menininha, desesperada, se desculpava freneticamente como se o ato daquela criança fosse um crime, a menininha ficou com os olhos bem abertos e assustados, com medo do que vinha pela frente, mas rapidamente o rapaz abaixou-se, direcionou suas mãos repletas de calos levemente ao chão, pegou aquela esperança azul em suas mãos, e a atirou nas mãos da menininha, o tempo congelara, a menininha vagarosamente mostrava seus dentes, demonstrando um certo alivio e ao mesmo tempo uma alegria inesperada, pegou o aviãozinho no ar, e aos pulos cantarolou:

- Peguei, peguei, peguei mãe! Seu olhar fixo no rapaz, que seguiu seu caminho, deixando para trás aquela luzinha contente com o simples, a mãe silenciou, e naquele momento delicado os três aprenderam uma valiosa lição.






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domingo, 12 de fevereiro de 2017

Eu vi um anjo hoje, ele não tinha nome, nem face, carregava algo em sua sacola florida que fazia um volume considerável, mas parecia um tanto quanto leve demais, então perguntei:
- o que levas contigo? Ele olhou em meus olhos tão profundamente a ponto de me deixar sem graça, e disse:
- Levo minha culpa, ela ocupa bastante espaço mas não é algo que merece a exacerbada importância que dou, a cada dia ela fica mais leve, pois a cada dia, eu me perdoo um pouquinho mais, porém, não entendo o fato de que mesmo estando mais leve ela permanece do mesmo tamanho.



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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

MARVIM - IV - TRÊS TRAVESSEIROS


Outra dose de impaciência permeava a aula de história da arte, pessoas se trucidavam, numa doce disputinha de: quem aparece mais no grito, ele ou ele? Num lampejo de tempo outra mulher fora silenciada, RIP. Sonoros gritos  abruptamente o arrancavam de sua leitura, desviava Marvim dos anjos,  demônios e Valkirias ali descritos em longínquas páginas de um livro. Em seguida o odor proveniente do escapamento de um caminhão fez arder seu cérebro, descia montado em sua vassoura o principal acesso para a faculdade a cento e cinquenta quilômetros por hora. Chegou em casa, tomou um banho frio, colocou uma roupa confortável (ele prefere as bermudas de elástico frouxo, pois não o apertam), com os pés descalços, vislumbrou sua cama meio desarrumada, ali havia pousado três montinhos tímidos do mais rígido ao mais maleável, um deles estava preso entre o estrado e a parede, bem no canto. Sem pestanejar amassou suas reclamações, depositando-as em envelopes dourados, devidamente lacrados com fitas de cetim em laço, e ali deixou uma por uma esquecida dentro das fronhas. Isso lhe fez bem, sentiu-se protegido e confortável, num suave cheiro de roupa limpa, adormeceu acolhido por seus três travesseiros.

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domingo, 5 de fevereiro de 2017

dessaturar

DESSATURAR

Foi como girar incessantemente após o almoço, ouvir uma música triste e lenta e não ter mais lágrimas para dar uma choradinha. O zoom out de nossas vidas pois-se ao trabalho, lentamente, distancia e esmaece meus olhos, dia-a-dia a vista fica turva, seus belos cachos enegrecem sem contraste com o breu de meus tortuosos pensamentos. 

Sua voz ecoa ao fundo de meu nervo auditivo, já quase que não reconheço, soa distorcida, breve, esquecida. Estavas por de trás, mudo, carregando um livro em seus braços, defronte caminhando em minha direção, entortou meu pescoço, fitou o chão - como quem observava em longínquos pensamentos, petrificou suas duas jabuticabas em mimraio laser que transpassa minhas vísceras, entortando minhas memórias, bagunçando meus sentidos. 
Calei, fiquei sem fala, gaguejei, quase que não sai: ...idade, ci..., ...ida, e finalmente... cidade!






sábado, 4 de fevereiro de 2017

shampoo jaborandi


Shampoo Jaborandi


O dia soou um tanto quanto menos cortante, no coração tardio afrouxou a perfuradora tesoura, encontrava-se a alguns milímetros da beira do átrio direito, onde sangue pobre em oxigênio passava, venoso, viscoso. Submersão, em suas inseguranças os olhinhos vibram desorientados, existe um globo de vidro ao redor da cabeça, rosqueado nas entranhas, prendendo a respiração do grito de alguém, enturvece sua visão, torna os lábios carnudos e rosados da primeira pessoa, brancos e secos, a voar em inconstantes farfalhar, falhar, falar, e o globo aperta como um prendedor segura as roupas no varal que desejam voar com o vento, mas não saem do lugar, as palavras presas ecoam apenas naquele espaço circular de vidro cada vez menor, que por uma simples rachadura, um rasgo em seus meios, em caquinhos transforma sua matéria, vira areia, pó. Dez metros de tecido liso e roxo, por favor, e as fitas enfeitam seus cachos, perfumados com jaborandi, em suas vibrantes cores de serenidade, cascalhos, castanhos fios libertos, ainda sujos pela areia do que foi um globo.



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LAÇOS E PUNHAIS
Lya Luft

Certa vez errei uma tecla do computador, e em lugar de perdas saiu peras.
Eu ia corrigir, mas li de novo, achei muito mais bonito e deixei assim. Ninguém reclamou, nem os revisores. Quem sabe um dos que estudam minha obra, preparando com a maior gravidade sua dissertação ou tese, pare, pense, morda a ponta da caneta ou fique olhando o computador, perplexo. Para depois discorrer filosoficamente sobre aquelas frutas perdidas num texto que nada tinha a ver com elas. Dessa maneira acontecem mal-entendidos: amizades se perturbam, amores se rompem, pessoas se desencontram e magoam.

- Mas você tinha dito peras!
- Não, eu falei perdas.
- Peras...
- Perdas...

Perdeu-se nesse logo inconsistente um pedaço de vida, um brilho de entendimento se apagou.

- Eu ia dizer que você me faz muita falta, mas você entendeu: - Você está em falta... comigo, com a vida, consigo mesmo.

E passamos meia hora evitando nos olhar de frente, nesses momentos o universo esteve em desconserto, e nós desconcertados.Quando eu era menina, certo dia num almoço fiquei observando a família à mesa, e aquelas pessoas tão conhecidas me pareceram umas enormes salsichas com tufos de pelos no alto, bolinhas se mexendo (chamadas olhos ansiosos, tranquilos, amorosos ou hostis) e aquele furo no centro que se abria e fechava emitindo sons. A boca do beijo, do silêncio ou do insulto. As outras salsichas também olhavam com seus botõezinhos de vidro brilhante, viravam-se para os lados, agitavam mãos ou abriam e fechavam seus furinhos-boca respondendo. Palavras esvoaçavam sobre a mesa como bilhetes, sinais de fumaça ou borboletas perdidas. Um falava, outro compreendia e devolvia sinais sonoros. Mas de repente alguém não ouviu direito: os olhinhos ficaram duros, os sons da boca estridentes, ou baixos mas furiosos. Agitação na sala de jantar. Briga em família. Então nem sempre que alguém dizia flor o outro pensava flor? E podia entender pedra? Em lugar de enviar sobre a mesa palavras-borboleta, jogavam palavras-pedra?

Nada era simples. O mundo se desarrumava um pouco por causa desses mal-entendidos. Até ali, para mim palavras eram objetos mágicos: agora via que podiam ser traiçoeiros. Belos de olhar, mas duros, com arestas cortantes, caramelos de vários sabores que eu deixava rolar na boca com delícia, porém a gente podia se engasgar, até morrer. Não era só prazer a linguagem: peras, perdas, fazer falta, estar em falta ou sentir falta. Desacordo, desconserto. Ambivalentes como nós, palavras preparam armadilhas ou abrem portas de sedução. Embalam ou derrubam, enredam em doces laços, ou nos matam dolorosamente como punhais.

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Na obra: Pensar é Transgredir